“O que eu quero é continuar a fazer jornalismo”: Uma conversa com Ana Suspiro, jornalista no Observador
24 JANEIRO 2024
Numa entrevista para o ciberjornal académico Autoavaliação, Ana Suspiro, jornalista especializada em economia no Observador desde 2014, recorda o início do percurso como jornalista e partilha as suas memórias de uma carreira com mais de 30 anos.
por António Santos

Ana Suspiro – Jornalista Observador
António Dias Santos: Onde é que surgiu o interesse pela escrita jornalística?
Ana Suspiro: Na altura em que comecei a estudar a maioria das pessoas queria fazer televisão, mas havia muitos mais empregos na imprensa escrita. Era mais fácil entrar, por outro lado, acho que a imprensa escrita permite desenvolver e aprofundar melhor os temas e ao mesmo tempo não expõem tanto as pessoas, como a televisão ou mesmo a rádio. Há uma maior exposição pessoal, enquanto na escrita, os jornalistas conseguem passar melhor por despercebidos, que é uma grande vantagem quando se quer arranjar notícias, mas essencialmente porque era onde existiam empregos. Mesmo agora quando os jornais em papel são quase peças de museu os jornais digitais apareceram em grande, e a imprensa continua a ser onde há mais oportunidades de emprego.
ADS: Vamos recordar os seus tempos de faculdade. Quais são as maiores recordações que tem de comunicação social?
AS: Eu fiz o curso de comunicação social na Universidade Nova de Lisboa, foi salvo erro o ano em que o número de vagas triplicou. Inicialmente eram cerca de 40 vagas passaram para mais de 100 vagas. Na altura havia muito poucos cursos de comunicação social, a maioria das pessoas que trabalhava na área não tinha formação e esta primeira leva que chegou ao mercado arranjou facilmente emprego, muitos deles não terminavam o curso, chegavam ao segundo ano de licenciatura e tinham ofertas de emprego. Eu já não apanhei muito essa realidade, portanto, tive uma universidade onde foi possível focar mais tempo ao estudo, eu fiz essa opção, mas tive muitos colegas que trabalhavam e estudavam ao mesmo tempo. Para mim foi muito interessante, quando fui para o curso não queria ser jornalista, nunca optei pela parte prática do jornalismo, estive mais ligada à área da semiótica, portanto, consegui não ter uma cadeira sobre jornalismo, além das obrigatórias.
Acho que a faculdade serviu essencialmente para me ensinar a pensar, a refletir, o jornalismo aprende-se nas redações efetivamente, por isso é que a nossa profissão é aberta a todos os licenciados de todas as áreas. Eu que sou jornalista económica, se calhar era mais relevante tirar o curso de economia. No final do meu curso apareceram diversos projetos interessante na área do jornalismo, o jornal PÚBLICO foi lançado, abriu a primeira televisão privada, neste caso a SIC, e um ano depois surgiu a TVI, a comunicação social era um meio em forte crescimento, era fácil arranjar emprego e os salários podiam começar por ser baixos, mas facilmente subiam porque havia muita necessidade de profissionais.
ADS: Como funciona a rotina de um jornalista?
AS: A rotina mudou muito, quando comecei não havia telemóveis, a internet não existia. Acho que depende muito jornal onde se trabalha, por exemplo, eu comecei na imprensa económica onde a rotina tem mais a ver com a manhã, o dia, as coisas importantes acontecem cedo, é um jornalismo muito especializado que exige um conhecimento muito grande. Uma pessoa vai a muitas conferências dos setores, tem de ouvir as pessoas para depois tratar a informação com valor acrescentado e correção, são temas exigentes, cada notícia exige mais tempo. A imprensa generalista é diferente, tende-se a trabalhar até mais tarde, o ciclo noticioso agora não para. Nós não trabalhávamos às 5 horas da manhã ou às 11 da noite, agora com o online é preciso estar sempre alguém de serviço, essa é a principal diferença. Os horários agora são rotativos, é muito difícil ter um emprego das 9 horas às 5 horas.
ADS: Quais foram os maiores desafios económicos no início da sua carreira?
AS: Uma pessoa quando vai estudar jornalismo nunca quer seguir a especialização de economia, salvo muito poucas exceções. Eventualmente há alguns casos, mas são pessoas que já provêm do setor económico. Durante alguns anos o setor foi bem mais pago que por exemplo o jornalismo cultural que toda a gente quer fazer. Os conteúdos aprendem-se a escrever, começando a ler as notícias, nós jornalistas de economia escrevemos para um público específico, o ideal seria que qualquer pessoa conseguisse ler um artigo que eu escreva, mas eu sei que isso nunca vai acontecer, como não é assim eu acabo por escrever para aquelas pessoas que eu sei que vão estar interessadas no assunto e que têm algumas bases para perceber o que eu estou a escrever. A banca é muito complicada, o setor energético também tem uma linguagem própria, ou seja, há determinados conceitos em que tu não consegues contar uma estória sem os utilizar, e na grande maioria das vezes as pessoas não sabem o que aquilo quer dizer. Até podes especificar o que o conceito quer dizer, mas se fizeres isso muitas vezes ao longo do texto ele torna-se um bocado elegível. É um processo bastante complexo, mas também é recompensador, tu atinges um nível de domínio técnico num setor, quase que consegues perceber as notícias sem que te digam quais são, tens a noção daquilo que é relevante e sobretudo daquilo que tem impacto na vida das pessoas.
ADS: Qual o momento mais marcante da sua carreira jornalística?
AS: Um dos momentos mais marcantes da minha carreira, foi quando num fim-de-semana de agosto em 2014, foi feita a resolução do Banco Espírito Santo, fiz parte do grupo de jornalistas que foi chamado num domingo às 20:00 horas, para uma conversa em off com o governador do Banco de Portugal, ele tentou explicar todas as implicações desta decisão que era obviamente uma decisão com implicações enormes e estar lá e ouvi-lo dizer uma coisa e quando as câmaras se ligam ele fica sozinho e aquilo que fala não é exatamente a mesma coisa que nos disse a nós, mas eu acho que o caso BES é um tema marcante da minha carreira.
ADS: Como é que foi acompanhar e noticiar a crise financeira em Portugal?
AS: É curioso, foi o facto de a crise financeira ter dado tanto trabalho que toda gente estava distraída com o que se passava com o BES. Nós começamos a crise em 2008, com a queda do “Lehman Brother”s, uma coisa avassaladora, mas a crise propriamente dita chegou a Portugal em 2010. Todos os dias havia coisas terríveis a acontecer, as descidas de rating, as desvalorizações em bolsa, os aumentos de impostos, os cortes salariais, os cortes de pensões, eram tantas coisas a acontecer ao mesmo tempo, de facto, não estávamos atentos à banca, nem ao BES. Todos os dias havia um drama novo, coisas que tinham um grande impacto na vida das pessoas, tu não podias deixar de noticiar enquanto jornalista, era preciso muita atenção ao que acontecia, nessa altura o BES conseguiu estar um pouco na sombra, toda a gente sabia que havia problemas, mas não havia tempo para nos dedicarmos àquilo. As primeiras notícias que saem sobre a crise no BES, não são sobre problemas financeiros, mas sim sobre conflitos internos entre administradores e acionistas, começou por parecer uma guerra de poder como no BCP, só mais tarde é que se percebeu a verdadeira dimensão financeira do problema, mas de facto é marcante e eu considero que a Comissão Parlamentar de Inquérito ao Banco Espírito Santo, que pôs aquelas pessoas todas à frente do país a dar explicações, muito antes da justiça que demora muito tempo a atuar é um dos grandes momentos da democracia portuguesa.
ADS: Alguma vez foi abordada externamente por alguma matéria que escreveu?
AS: Os nossos contactos mail estão nas notícias, portanto, às vezes dão os parabéns, outras vezes criticam e dizem que está tudo errado, mas em relação à abordagem na rua, efetivamente, basta uma pessoa ir à televisão fazer um comentário que não é propriamente dar uma notícia. Algo que às vezes acontece com os jornalistas que são chamados à televisão a comentar e isso tem logo uma reação por parte dos leitores mais atentos.
ADS: Como foi trabalhar com o Covid-19?
AS: Os jornalistas adaptaram-se naturalmente, quando o Covid apareceu os impactos foram tão transversais, envolveram também impactos económicos, só os programas de apoio como o lay-off , quase todas as semanas o governo anunciava novas medidas de apoio à economia. A crise da TAP que emergiu em grande força nessa altura, não tivemos falta de trabalho. O desafio foi trabalhar a partir de casa, para quem está habitado a trabalhar num ambiente de redação presencial é realmente muito complicado trabalhar sozinho. No caso do Observador tinha acabado de ser lançada a rádio que se manteve fisicamente, os jornalistas do site ficaram em casa durante vários meses a fazer escalas. Todos nós tivemos de nos tornar um bocadinho peritos em modelos matemáticos, eu lembro-me de procurar contactos de especialistas em saúde pública que é algo nunca na minha vida pensei precisar, mas pronto tivemos de nos adaptar. Por outro lado, havia muita gente a ler-nos, os números de audiência dispararam, notou-se que as pessoas se viraram para a informação credível ou certificada dos jornais e não tanto para as redes socias e também foi muito trabalhoso, estávamos em casa, não havia horários, não tínhamos vida, acabámos por passar muito tempo a trabalhar.
ADS: Qual o impacto que a inflação e Guerra na Ucrânia tiveram no jornalismo económico?
AS: No caso do Observador, a Guerra na Ucrânia faz com que ainda hoje exista um modelo de escrita, um formato em que colocamos publicações em sequência que é feito todos os dias sobre os acontecimentos diários da guerra. No primeiro ano, o que mais foi noticiado foram as questões da crise energética que tiveram um grande impacto nos mercados de energia, desde o nível dos preços à questão do gás. Neste momento essa questão estabilizou, mas gerou inflação, um tema que eu não trato tanto, uma vez que, está mais ligado aos mercados financeiros, uma área que atualmente não trato. As taxas de juro são também outro problema grave, essencialmente para as famílias que têm créditos e é um problema que vai durar muito mais tempo que a inflação.
ADS: Quais são os seus projetos para o futuro?
AS: Eu não sou uma pessoa que faça planos para o futuro, deixo a vida correr, mas o que eu quero é continuar a fazer jornalismo, porque eu tenho uma situação que não é muito comum com os meus anos de carreira que é a questão dos cargos. Eu não sou diretora, editora, basicamente sou apenas jornalista e não é muito comum chegar a esta fase da carreira e não ter um cargo que implica mais responsabilidade e menos tempo para escrever noticias. Basicamente o que eu quero é continuar a escrever notícias, fazer trabalhos de investigação, coisas que fujam da atualidade.